Thursday, November 23, 2006

Cresci com um enorme retrato de Charlie Parker no quarto.
Julgo que para um miúdo que resumia toda a sua ambição em tornar-se escritor, Charlie Parker era de facto a companhia ideal. Esse pobre, sublime, miserável, genial drogado que passou a vida a matar-se e morreu de juventude como outros de velhice continua a encarnar para mim aquela frase da Arte Poética de Horácio que resume o que deve ser qualquer livro ou pintura ou sinfonia ou o que seja: uma bela desordem precedida do furor poético diz ele é o fundamento da ode.

Sempre que me falam de palavras e influências rio-me um pouco por dentro: quem me ajudou de facto a amadurecer o meu trabalho foram os músicos. A minha estrada de Damasco ocorreu há cerca de dez anos, diante de um aparelho de televisão onde um ornitólogo inglês explicava o canto dos pássaros. Tornava-o não sei quantas vezes mais lento, decompunha-o e provava, comparando com obras de Haendel e Mozart, a sua estrutura sinfónica. No fim do programa eu tinha compreendido o que devia fazer: utilizar as personagens como os diversos instrumentos de uma orquestra e transformar o romance numa partitura.

Beethoven, Brahms e Mahler serviram-me de modelo para A Ordem Natural das Coisas, A Morte de Carlos Gardel e O Manual dos Inquisidores, até me achar capaz de compor por conta própria juntando o que aprendi com os saxofonistas de jazz, principalmente Charlie Parker, Lester Young e Ben Webster, o Ben Webster da fase final, de Atmosfera para Amantes e Ladrões, onde se entende mais sobre metáforas directas e retenção de informação do que em qualquer breviário de técnica literária.

Lester Young, esse, ensinou-me a frasear. Era um homem que começou por tocar bateria. Um crítico perguntou-lhe qual o motivo que o levava a mudar da bateria para um instrumento de sopro e ele explicou: - Sabe, a bateria é uma coisa horrivelmente complicada. No fim dos concertos, quando acabava de desarmá-la, já todos os colegas se tinham ido embora com as raparigas mais bonitas. O facto de desejar ter também raparigas bonitas levou-o, entre outras obras-primas, a These Foolish Things onde cada nota parece o último suspiro de um anjo iluminado. A fotografia que dele tenho mostra um homem sentado na borda da cama de um quarto de hotel com um sax tenor ao lado. Magro e envelhecido fita-nos através dos anos com os olhos mais doces e tristes que já vi. Usa uma gravata torta e um casaco amassado, e poucas pessoas estiveram decerto tão perto de Deus quanto esse vagabundo celeste.

Ben Webster, por seu turno, assemelhava-se a um lojista gordo que uma auréola invisível mas óbvia transfigurava. Estas três criaturas sentavam-se à direita do Pai e espanta-me não as encontrar nos altares das igrejas. Talvez que não exista lugar, em céus de mármore e gesso, para alcoólicos promíscuos e pecadores sem remédio.

Talvez haja pessoas que se sintam melhor na companhia de criaturas edificantes que não edificaram nada a não ser vidas sem alegria rematadas por agonias virtuosas em odores de açucena.

Como penso que Deus não é parvo estou certo que lhe daria comichão tanta bondade melancólica e tanta estreiteza sem mérito. Aposto mesmo que toca bateria a fim de deixar para os outros as raparigas mais bonitas, e ficar a arrumar discretamente tudo aquilo, tambores e pratos, enquanto Charlie Parker, Lester Young e Ben Webster levam em paz o gin, a marijuana e as miúdas jeitosas para um estúdio de gravação onde Billie Holliday principiou agora mesmo a cantar o seu poder e a sua glória até ao fim dos tempos.
António Lobo Antunes

Sunday, November 19, 2006

choveu como não chove há anos,
os avós e velhotes dizem-nos ser culpa da poluição e da ganância do Homem.

- faz bem, filho, proteger o ambiente e a terra - abafo ao longe as palavras, com os sons de quem está num ritmo 75 rotações.
- vó! estou cheio de pressa, tenho de ir para as aulas.
Ela grita indignada - mas está tanto frio!
parece que vou explodir. que mania de estarem sempre a tentar manter-nos em casa, a frustrarem-nos
Apetece-me responder.
Mas não há tempo para raiva e despiques.
O comboio não espera.

Mais tarde no encosto do comboio, volto a pensar no assunto. Aquilo não me sai da cabeça, as palavras feitas para destruir cada sonho, cada alegria. Acham que temos de estar em casa no inverno e só sair de casa no verão. que raiva.

Será que os mais velhos perderam a capacidade de sonhar?
Habituaram-se ao trabalho, casa e familia.
Qualquer tempo gasto fora disso pode ser trocado por um par de pantufas nos pés e uma manta de quadrados nas pernas. Qualquer dinheiro torna-se como desperdiçado quando não é direccionado para uma casa, para carro ou para encaminhamento de emprego. Qualquer saída com amigos tem de ser encarada como uma procura pela cara-metade.
e depois de conquistado a cara-metade, o emprego e a casa, talvez já possamos receber nesse natal, umas pantufas e uma mantinha aos quadrados.

Friday, November 10, 2006

jamie no coliseu



Thursday, November 02, 2006

mariza
Povo Que Lavas No Rio



ao vivo em londres - sem amplificação